sábado, 14 de junho de 2014

116- As Vacas Pop de Andy Warhol



"Cow Wallpaper", Papel-de-Parede da Vaca (1)
A vaca foi  usada pelo artista plástico americano Andy Warhol(1928-1987) como tema para  o primeiro de uma série de desenhos transformados em papel-de-parede, que ele criou a partir da década de 1960 até a década de 1980. 
De acordo com Warhol, a inspiração para o tema da vaca resultou de uma sugestão feita pelo negociante de arte Ivan Karp, que disse a ele: "Por que você não pinta algumas vacas? A imagem da vaca  está presente desde sempre na história das artes. Elas são tão maravilhosamente pastorais…”
Warhol conta que Karp pareceu ter ficado chocado quando viu as enormes cabeças de vaca desenhadas por ele sendo levadas para se transformarem em rolos de papel. Elas foram pintadas numa cor rosa brilhante sobre um fundo amarelo brilhante. Eram vacas pop, bem distantes daquelas vaquinhas pastorais, imaginadas tradicionalmente.
Mas, passado o primeiro impacto, Karp explodiu: "Elas são super-pastorais! São ridículas! Elas são incrivelmente brilhantes e vulgares".
Karp passou a amar aquelas vacas e na mostra seguinte de Warhol, eles cobriram todas as paredes da galeria com as cabeças das vacas pop. 
Alguns dos trabalhos de Warhol, como esse da vaca, foram descritos como sendo "keatonescos". O adjetivo keatonesco faz alusão ao ator cômico americano, cineasta, produtor e escritor, Joseph Frank "Buster" Keaton (1895 -1966). Conhecido por seus filmes mudos, sua marca foi a comédia física. Usava sempre uma expressão impassível como a da vaca pop de Warhol, que lhe valeu o apelido de "O Grande Cara de Pedra."
Como muitos outros artistas da Pop art (2), Andy Warhol criou obras em cima de mitos como Mao Tse Tung. Retratou muitos ícones da música popular e do cinema, como Michael Jackson, Elvis Presley, Elizabeth Taylor, Brigitte Bardot, Marlon Brando e, a sua favorita, Marilyn Monroe. Warhol mostrava personalidades públicas como figuras impessoais e vazias de sentimento, tais como bens de consumo.  Associava essa ideia à técnica com que reproduzia estes retratos, numa produção mecânica ao invés do trabalho manual. Da mesma forma,  representou a impessoalidade do objeto produzido em massa, como as garrafas de Coca-cola e as latas de sopa Campbell. 

E a vaca retratada por Warhol? Como se encaixa? Na categoria de mito?  Ou na de bem de consumo? Segundo C. G. Jung "A fome transforma os alimentos em deuses...", vista assim, podemos dizer que a vaca se encaixa nas duas categorias.

NOTAS:
1) Em 1963, na galeria Gertrude Stein, Yayoi Kusama usou na instalação de seu trabalho: "Aggregation: One Thousand Boats Show", um barco a remo cheio de esculturas fálicas, um quarto forrado com 999 reproduções fotográficas em preto-e-branco dessas esculturas.  Esta peça Pop surreal foi influente no caminho que levou a arte fora do quadro e invadiu uma sala inteira. Três anos depois, em 1966, Andy Warhol "imitou" seu tratamento de paredes com o seu "Cow Wallpaper". Sobre Warhol, Kusama disse: "Éramos como líderes de gangues rivais, inimigos no mesmo barco." 
(fonte: http://www.economist.com/node/21545982)

2) A Pop Art, abreviatura de Arte Popular, foi um dos movimentos artísticos que se desenvolveu a partir da década de 1950, na Inglaterra e nos Estados Unidos, em reação ao movimento do expressionismo abstrato das décadas de 40 e 50. Os artistas deste movimento buscaram inspiração na cultura de massas para criar suas obras de arte, aproximando-se e, ao mesmo tempo, criticando de forma irônica a vida cotidiana materialista e consumista. Latas de refrigerante, embalagens de alimentos, histórias em quadrinhos, bandeiras, panfletos de propagandas e outros objetos serviram de base para a criação artística deste período. Os artistas trabalhavam com cores vivas e modificavam o formato destes objetos. A técnica de repetir várias vezes um mesmo objeto, com cores diferentes e a colagem foi muito utilizada. 

segunda-feira, 2 de junho de 2014

115- Uma História de Déja vus (4/4) - O Princípio de Hórus e o Caminho do Coração

baixo relevo egípcio
no centro, o olho de Hórus (1)
(continuação das postagens 112 a 114)
Dra. Nise relata que um caminho de imagens solares se iniciou na vida de Carlos a partir dessa intensa experiência da visão do "Planetário de Deus". Disse ela: "através de todo esse percurso na escuridão do inconsciente, como um fio condutor, está presente o princípio de Hórus,  isto é, o impulso para emergir das trevas originais até alcançar a experiência essencial da tomada de consciência. O princípio de Hórus rege todo desenvolvimento psicológico do homem e é tão forte que se mantém vivo mesmo dentro do tumulto de uma psique cindida, por mais grave que seja sua dissociação."
Na cultura egípcia o deus Hórus, filho de Ísis e Osiris representado muitas vezes por um olho, é símbolo do olhar justiceiro, discriminador, que combate Set, o maligno. O coração é a Casa do Sol, a morada do Si-mesmo. O caminho do divino é o caminho do coração, tanto na vida como na morte. O princípio de Hórus ilumina esse caminho. 
Também nas vivências do escritor francês Antoine Artaud o sol foi símbolo da consciência que ele buscou.  Em 1936, vai ao México com a meta de reviver os vestígios da antiga cultura asteca que usava alimentar os deuses elevando corações ainda pulsantes em sacrifícios ao sol. Confiavam que receberiam em troca a renovação da vida e a imortalidade.  O sol, na psicologia junguiana, é tanto símbolo do ego, o centro da consciência, quanto do Si-mesmo e representa o poder criador da psique.
Na visão da Dra. Nise, ir até lá não foi para Artaud certamente uma atitude de pura curiosidade em relação a uma população exótica, mas uma busca secreta de fortalecimento de si mesmo. Coincidência ou não, sabe-se hoje sobre a influência da exposição à luz solar sobre neurotransmissores como a serotonina diretamente relacionada aos estados de humor e bem-estar, uma base natural importante para a reconstrução da unidade psíquica. 
Em 1982, o ano seguinte a minha ida à exposição "Imagens do Inconsciente" foi um turning point. Como uma flor que se move em direção ao sol por uma espécie de instinto que busca a luz, rumei numa nova direção movida por novos interesses muito mais verdadeiros dentro de mim. No campo profissional mergulhei no universo da psicologia, me especializando mais tarde na abordagem junguiana.

Essa associação de eventos me veio à memória 24 anos depois, no instante em que recebi a flor das mãos do José Alberto, paciente do Museu de Imagens do Inconsciente. Rápido como um déjà vus... foi um raio de sol que tocou meu coração.  
E lembrando Carlos Castaneda..."um caminho é só um caminho, e não há desrespeito a si ou aos outros em abandona-lo, se é isto que o coração nos diz... examine cada caminho com muito cuidado e deliberação. Tente-o muitas vezes, tanto quanto julgar necessário. Só então pergunte a você mesmo... Este caminho tem coração? Se tem, o caminho é bom, se não tem ele não lhe serve. Um caminho é só um caminho. "

NOTA:
(1) O olho de Hórus ou "Udyat"é um simbolo proveniente do Egito Antigo, que significa poder e proteção, relacionado ao deus Hórus. É um dos amuletos mais usados no Egito. 
(2) Fonte: Silveira, Nise. Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

114- Uma História de Déjà vus (3/4) - Do Algodão-da-Praia ao Planetário de Deus

(continuação da postagem 113)
José Alberto termina a leitura do último poema e retira-se. Quando volta, fala com rapidez sobre dinheiro, documentos... Desaparece novamente para voltar em seguida com duas flores lindas. São amarelas com o centro vermelho escuro, recém tiradas de alguma árvore próxima ao museu, conhecida pelo nome de algodão-da-praia. Oferece uma pra mim e outra pra uma colega, para então desaparecer novamente nos corredores do museu.

Aquela flor
Como um pequeno raio de luz
Do sol
Por um momento
Um déjà vu...

Logo em seguida, me vem à memória 1981, mais de 25 anos atrás...
Fui ver no Paço Imperial a exposição Imagens do Inconsciente, homônima do livro de Nise da Silveira que estava sendo lançado. Eu não era ainda psicóloga, tinha uma outra profissão e fui por pura curiosidade.
Estavam ali expostas obras dos pacientes psiquiátricos do período entre 1946 a 1974, algumas dessas mesmas obras que eu agora revisitava no atelier do museu com meus colegas da PUC.
Em 81 os loucos ficavam internados. A forma como se davam as internações e o tipo de tratamento desumano a que eram submetidos refletiam, na visão de Ferreira Gullar, uma forma da sociedade cada vez mais racionalista e pragmática desembaraçar-se de um incômodo. Segundo ele "quanto mais a sociedade se organizava, mais racionalizava seu funcionamento e suas relações de trabalho e produção, menos espaço sobrava para os que não se ajustavam a essa organização". Hoje José Alberto, que se auto-intitula "o neto da Nise", mora em sua casa própria, ao lado do museu, que frequenta livremente.
Um dia, Nise se negou a aceitar o convite feito pelo psiquiatra diretor do hospital para acionar o botão que produziria o choque elétrico em um paciente, como também se negaria a usar o choque insulínico e o cardiazol. Nesse momento uma revolução se instalou no seu caminho e no caminho da psiquiatria brasileira. A partir daí passou a dirigir a seção de Terapêutica Ocupacional do Hospital Pedro II, único lugar onde esses procedimentos não eram utilizados.
Sem possuir ainda uma teoria de Terapêutica Ocupacional, buscou no caminho psicológico uma alternativa para o tratamento da esquizofrenia. Buscou meios de expressão simbólica tendo criado além de oficinas de trabalho (costura, encadernação, marcenaria...), ateliers de atividades expressivas como pintura e modelagem.
Contrariando os conceitos até então estabelecidos, as imagens pintadas ou modeladas pelos pacientes psicóticos revelaram riquezas insuspeitadas mesmo após longos anos de doença, foi o que Nise pôde perceber e relatar ao mundo.
Em 1954, envia uma carta a Jung junto com algumas fotografias de mandalas produzidas pelos pacientes. Em resposta, o mestre efetivamente as reconhece como manifestações de forças do inconsciente que buscavam compensar a dissociação. Via como um esforço para superar os conflitos profundos e uma possibilidade de reencontrar um equilíbrio na relação com o mundo.
Nise descobre na psicologia junguiana, especialmente no conceito de inconsciente coletivo e das imagens arquetípicas, a chave para decifrar a leitura das obras produzidas pelos esquizofrênicos. Em 1957, ela obtém uma bolsa para estudar no Instituto C. G. Jung, em Zurich, apresentando em seguida as obras do acervo no II Congresso Internacional de Psiquiatria. 
Lança uma nova alternativa às teorias da época, mostrando ser o afeto um caminho possível de aproximação entre o mundo fechado do esquizofrênico e a realidade. Organiza o material produzido demonstrando estar ali expresso algo possível de significar a vida psíquica desses pacientes.

Um dos quadros da exposição Imagens do Inconsciente me chamou atenção especial. Continha a representação de uma outra flor muito semelhante aquela que Jose Alberto me ofereceu. Talvez possa até ter sido tirada da mesma árvore próxima ao museu. Quem vai saber? Carlos Pertuis, paciente da Dra Nise deu o nome a esse quadro  de Planetário de Deus Pintou no centro uma flor dourada, símbolo do sol e da divindade, uma mandala que se apoia sobre duas serpentes negras simétricas, símbolos da escuridão e do mal.

Fontes:
1) Gulllar, Ferreira Nise da Silveira, uma psiquiatra rebelde. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996.
2) Jung, C.G. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1963. 
3) Silveira, Nise. Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981.


segunda-feira, 14 de abril de 2014

113- Uma História de Déjà vus (2/4) - Poemas de um Louco

(continuação da postagem 112)
José Alberto escreveu rapidamente muitos poemas para nós enquanto visitávamos o museu. Começou o primeiro poema com a frase “Pé no Chão” e, ao lado, carimbou seu pé descalço usando um pouco de lama como tinta. Literalizou e sintetizou através dessa imagem sua impressão de estar no mundo e sua impressão no mundo. Não fez uma impressão digital, prova da identidade. Fez uma impressão da sola do pé marca da existência aqui na Terra. Levei seu manuscrito para digitar, mas “sua letra é de médico”, como diz Gladys. Voltamos na semana seguinte para que ele nos lesse o poema enquanto gravávamos.      
                                     

        no

              Chão
                                           


E cabeça nos astros
Astroloucura
A capacidade
De ser um
Louco de pé

Torto
E o coração
Virado do avesso
Da sanidade
Com a realidade
Bem fora de si
Déjà vu
Shanti
                        
Assinado,
Um louco.

 .
Lá se vai o visitante
Abre o portão
No canteiro alucinante
Com as chaves
Sem porquês
Não diz na chegada
Nem “como vai você?”
A intimidade
Um parecer
E você, o que trás?
Uma linda carruagem?
Leve daqui as imagens
Não a loucura, essa não
Ou pode ir, pois é
O meu passaporte para a viagem
A jornada é longa
Como as conversas dos doutores
Faixa-preta – Psicanálise – Terapia - Artes quânticas
E filo-patologia dentre tantas alquimias
Como pudera eu dizer da logosofia
Nas pautas da ideologia
Seria a pontaria
Apontada na outra mira
Com a certeza, sem a dúbia colocação
Fica então a questão
Qual a sorte da psique para a moral?
Teria alguém como eu
Um mal diante de outras lentes?
Racional no enfoque transpessoal?
Ou a morte material?
Exterminada a concepção cessaria

O irracional monstro pensante
Eu vir a ser um extraterreno?
Matrix – Jedi – Yoda – Hilander?
O homem que veio das estrelas?
Seria um imaginário fértil?
Cheio de historias fabulosas?
Ou um conto de realidade?
Será o Código da Vinci uma aberração?
Ou a verdade pura noutra situação?
Serei a paixão de Cristo?
E a tentação de Cristo?
Uma ficção ou uma inteligência artificial?
Um robô?
Uma nova era?
O que você espera?
Uma outra filosofia anti-maria?
Ou uma poção anti-atômica?
Uma bomba da paz?
Ou por de trás
A inocência de criança superdotada
Faz ditados com recados déjà vu?
Eu até penso no R$ (real)
Será a minha intenção
O mal?
Ou as colocações outras aquisições
Das experimentações do invisível pessoal?
De qual mentira você gosta mais?
As de Papai Noel?
Príncipes transformados em sapos?
Gatos negros?
Ou se você não acreditar
Que a verdade não é verdade
Ela passa em sua concepção como uma mentira
E se você acredita em mentira,
Esta não passou a ser verdade para você?
Assim, eu acredito em uma voz
Você pode até como a doutora
Dizer que é Deus
Eu até posso acreditar
Agora se Ele conta mentiras
É problema Dele
É Dele e do diabo
Se quiser pagar este mico com Ele
(Eu nem trabalho no Ibama)
Eu ganho meu beneficio pelo INSS por ser louco
Acho que todo mundo tinha de ser louco

Afinal quem são vocês para os loucos?
Visto que de perto
Ninguém... ninguém
É tão normal
Que chata esta conversa mole
Que não leva a nada
Mas meu caro e minha cara
Se eu sou um louco varrido
Como é que eu iria ser tão chato
Para encher o saco de vocês?
Eu ganho para isso
Me faço de maluco para poder viver
Tem algum emprego pior
Do que ter um papagaio na orelha
24 horas por dia me enchendo o saco?
Eu até reconheço o ditado
Do papagaio que come milho
Mas como é que eu iria falar das loucuras
Que vocês assistem todos os dias
Na TV, no DVD, no teatro, na piscina, em casa...
Sem ter o único privilégio de alugar vocês de graça?
Pois a loucura é contagiosa
Pega por pensamento e contato
Quer ver só um exemplo na praticidade?
Peguei! (nesse momento ele toca o braço da Gladys)

Um dia o mundo falou
Em segredo para mim
Você sabe o que é ser gente....
Eu até pensei nisso
Durante algum tempo
Na minha vida
Hoje déjà vu
Eu sei o que é filho de gente
Que ao nascer chora
E todo mundo acha graça
Depois que viveu
Morre feliz
E todo mundo chora

Um abraço,
De um louco

Um louco desconhecido
Pois louco já está saindo de moda

Já tem clones
E se explica
A gravidez psicológica
A ressurreição
Só não se explica a loucura
E o seu anfitrião
O próprio Criador
E seu cúmplice
O louco por amor
Às famílias humanas

PS de um amigo do caminho da estrela brilhante:
Se vocês, após esta longa história de vida pudessem ver os vossos olhos, iam ver mais que a normalidade. Saberiam sem medo, que louco é louco mesmo, mas tem o coração de uma inocência que até Deus duvida e o Diabo fica curioso.

Saudade,
De um louco





segunda-feira, 7 de abril de 2014

19- Quando o animal vira o bicho!



Não é só Darwin, os conhecimentos da neurociência não nos deixam mentir: o homem faz parte do reino animal assim como o reino animal faz parte do homem.
O instinto para Jung é um fator psíquico (2).
Na psique do homem existe o animal. O arquétipo animal se manifesta como a parte instintual da psique. 
Se for negado pode tornar-se perigoso.
Assim como o animal ferido torna-se perigosamente agressivo, o lado animal do homem pode voltar-se contra o próprio homem, que o reprime e o distorce, e destruí-lo.
Ele vira o bicho!

Notas:
(1) O Boi-da-cara-preta, máscara usada na Farra do Boi, oficina liderada pela Dra Nise (ler postagens deste blog desde setembro de 2010).
(2) Jung chamou de arquétipo a parte herdada da psique; padrões de estruturação do desempenho psicológico ligados ao instinto; evidente somente através de suas manifestações.
O arquétipo é um conceito psicossomático, que une corpo e psique, instinto e imagem.
Não considerava a psicologia e imagens como correlatos ou reflexos de impulsos biológicos. Considerava que as imagens evocam o objetivo dos instintos, portanto imagem e instinto são de igual importância.
(3)Referência: http://www.rubedo.psc.br/dicjung/verbetes/arquetip.htm

quarta-feira, 12 de março de 2014

112- Uma História de Déjà vus (1/4) - José Alberto, o neto da Nise

Tela de José Alberto - MIIcs

No dia do fechamento do curso de pós-graduação em Psicoterapia Junguiana e o Imaginário da PUC-RJ em dezembro de 2006, nossa turma foi até o Engenho de Dentro, numa visita ao Museu de Imagens do Inconsciente. 
O espaço criado por Nise da Silveira (1) em 1952 é coordenado atualmente por nossa  professora Gladys Schincariol. Possui um rico acervo e um atelier onde alguns pacientes fazem uso da expressão artística como alternativa de tratamento. Pudemos ter acesso na sala do arquivo a verdadeiras obras de arte que notabilizaram ex-internos como Adelina Gomes, Emygdio de Barros, Fernando Diniz, Carlos Pertuis entre outros. 
Do lado de fora encontramos o José Alberto (2). Na varanda do prédio ao lado, uma escrivaninha antiga de madeira escura posta ali por ele, demarca um espaço seu. Quando dá uma voltinha deixa seu paletó apoiado no espaldar da cadeira. 
Vestindo um terno bege, camisa azul-marinho, gravata preta, sapatos pretos um tanto surrados e sem meias, faz um estilo intelectual que não está muito aí pra aparência. Eu diria, tem um quê de Artaud tupiniquim. 
Com olhos inteligentes um pouco mais brilhantes do que se costuma ver por aí, tem um ar meio brincalhão, de criança travessa, apesar do cabelo e da barba já apresentarem seus primeiros fios brancos. 
Seu vocabulário é rico e José faz uso articulando incessantemente muitos assuntos com humor e rapidez. Dá a impressão de divertir-se jogando com aquilo que se diz que é certo e errado, bom e mal, louco e normal... Parece buscar assim uma compreensão sobre a vida, uma compreensão sobre si mesmo. 
Enquanto Antonin Artaud afirmava no seu estilo veemente que “não é o homem, mas o mundo que se torna anormal...e (que) a consciência doente tem o maior interesse em não sair da sua doença”(3), José Alberto aborda a mesma questão no seu jeito jocoso. 
Escreve diariamente, “costurando” palavras e imagens com a mesma profusão com que Bispo do Rosário literalmente costurava palavras e imagens nos tecidos. Sai rimando, fazendo poesia da sua busca de porquês, e tudo que encontra são déjà vus
Eventualmente também pinta, explorando luz e sombra. Usando cores escuras com pinceladas espessas anuncia “tsunamis”, como diz ele, talvez uma metáfora da experiência do surto em que devastadoras ondas do inconsciente obscurecem a clareza do pensamento.
Assina-se “um louco”, ou como “o neto da Nise”. Segundo ele, para nós os “não-loucos”, o louco não precisa de nome. Mesmo assim, ele nos revelou o seu.  (segue na postagem 113)


NOTA:
1) Sobre a Dra Nise e o Museu de Imagens do Inconsciente, visite: https://www.youtube.com/watch?v=fNezZ92yQ_w
2) José Alberto nasceu no Rio de Janeiro, em 1959. As dificuldades em seus relacionamentos familiares levaram-no a perambular pelas ruas. Começou a participar, em meados da década de 1980, dos ateliês de pintura e modelagem do Museu de Imagens do Inconsciente. Suas telas são muito coloridas, carregadas de simbologia. Escreve textos e poemas, revelando também nessa produção uma intensa criatividade.
3 )Silveira, Nise. Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981.


quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

111- Jung e Telésforo


Enquanto a linguagem verbal é um instrumento do pensamento da lógica causal, a expressão pela imagem é um método direto. Disse C. G.   Jung:  “a imagem é uma expressão condensada da situação psíquica como um todo”.
Muitas vezes as palavras e os escritos não eram suficientemente reais para Jung.  Necessitava representar seu saber esculpindo na pedra,  como forma de apoiar em terra firme suas fantasias e conteúdos psíquicos.
Foi assim que esculpiu uma mandala (FOTO)  que tem como imagem central uma figura humana carregando uma pequena luminária. Em torno desta imagem está representada a pupila dos olhos de outra pessoa, que a vê.  Mostra como nossa imagem se vê refletida nos olhos do outro.
 Em torno da pupila, um círculo maior representa a íris, dividida em quatro quadrantes onde tem em cada par oposto os símbolos do sol e da lua, do masculino e do feminino. Nesse anel, Jung delineou a inscrição grega que assim traduziu:“O tempo é uma criança – brincando como uma criança – brincando sobre um tabuleiro de xadrez – o reino da criança. É Telésforo, que erra pelas regiões sombrias do cosmos e brilha como uma estrela elevando-se das profundezas. Ela indica o caminho para as portas do sol e para a terra dos sonhos”. 
Telésforo, que na mitologia grega simboliza a convalescença, o período subseqüente a uma doença, é filho de Asclépio, principal deus da medicina. A "doença" que Telésforo anuncia a convalescença com sua pequena luz, é o momento de imersão completa no inconsciente, na escuridão do nada absoluto, referida no texto traduzido do grego, como "sombrias regiões do cosmos".
Normalmente o tempo é representado pela figura da morte, uma caveira sinistra com uma foice na mão, mas aqui é representado por Jung na figura de uma criança que brinca, iluminando nossos caminhos pela escuridão do céu infinito. É também uma representação do Si-mesmo (self),  nossa imagem interna central, quando é reconhecido por nós no outro, no mundo, na matéria. Telésforo representa o tempo em que se resgata a luz, a discriminação, a direção em situações de obscurecimento do ego, o centro da consciência.
As imagens do tempo como a caveira que traz a foice ou como a criança que traz a luz, cada uma delas faz referência a dois tipos de vivência do tempo.
A primeira, fala do tempo linear a que nossa carne se vê submetida, facilmente percebido pelas transformações externas que manifestam o que é o desígnio do corpo e do ambiente a sua volta. É marcado pelo nascimento, vida e morte e está relacionado à forma causal de pensamento, princípio, meio e fim. Na forma causal, pensamos de trás para frente, de eventos passados mais remotos para diante numa seqüência contínua. Procuramos em causas anteriores a justificativa do que se segue. Mesmo que percebamos a existência de certos padrões cíclicos como, por exemplo, os ciclos da lua, os da menstruação ou mesmo, internamente, os ciclos psicológicos, cada evento do ciclo nunca será idêntico. São como mortes e renascimentos. 
Na mitologia grega, é  Cronos que representa o tempo relacionado à  morte, um tempo que se consome a si mesmo. Já Kayrós, é um tempo não-linear. Representa aqueles momentos que transcendem as limitações impostas pelo medo da morte, num segundo tão vasto quanto o espaço infinito.
Enquanto Cronos se refere ao aspecto quantitativo, Kayrós se refere ao aspecto qualitativo do tempo.
A palavra kayrós, em grego, significa o momento certo. Em latim, corresponde a momentum, o instante que deixa uma impressão forte e única por toda a vida. Traduz a experiência do tempo presente na qual sentimos estar vivendo na hora certa no lugar certo. É a vivência do momento oportuno em relação à determinada ação, sem o peso de cargas passadas e da ansiedade em relação ao futuro.
Jung conta que a idéia da escultura da mandala brotou, quando observando um detalhe na pedra ainda bruta viu um pequeno círculo, vislumbrando uma espécie de olho que o fitava. Como diante de um espelho, Jung usou Telésforo como simbolo do que provavelmente via refletir de si mesmo em tudo que se relacionava: "aquele que resgata luz", aquele que promove consciência em meio ao caos do inconsciente.


E você, o que vê refletido no centro da sua mandala?


FONTES:
1) Jung, C.G. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1963. 
2)Silveira, Nise. Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981.