terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

69- As vacas da Igreja da Grama


Mais um encontro com o "boi", desta vez na igreja da fazenda São Joaquim da Grama, em Rio Claro, Rio de Janeiro.  
A igreja foi construída em 1809 pelo pai de Joaquim José de Souza Breves (1) quando o menino tinha cinco anos de idade. Comendador da Ordem da Rosa e Cavalheiro de Cristo, Joaquim José ficou conhecido como o Rei do Café. Sua riqueza foi uma das maiores do seu tempo. Faleceu aos 85 anos, no ano seguinte à abolição dos seus mais de dois mil escravos, fato que o deixou indignado com o Estado.
Quando vista de longe, a igreja guarda a beleza arquitetônica e a marca dos tempos de opulência com suas duas torres. Chegando lá, que susto! Toda estrutura interna esta caindo aos pedaços (foto). E que cheiro! O piso esta quase todo coberto por excrementos bovinos. A igreja da Grama, onde os Breves planejaram descansar em criptas nobiliárquicas, foi invadida por vacas. Antes disso, foi saqueada e depredada pela população humana. Levaram o sino, o assoalho, a escada do púlpito, rabiscaram as paredes... Mas ainda antes, nos anos 60, a igreja foi desacralizada  depois que a policia escavacou-a sem sucesso, a procura do corpo desaparecido de Dana de Teffé (2).
De origem checa, Dana de Teffé era bela, culta e rica. Nunca mais foi vista desde que viajou do Rio de Janeiro para São Paulo na companhia de seu advogado amigo, Leopoldo Heitor.  Cinco meses depois, ele vende todos os bens de Dana, usando uma procuração que mais tarde se provou ser falsificada. Logo em seguida, desperta ainda maior suspeita por apresentar sinais claros de enriquecimento pessoal.
Após ter dado à policia diferentes versões para o desaparecimento de Dana e ter tentado fugir do país, Leopoldo Heitor foi julgado à revelia e condenado a 35 anos de prisão. Conhecido como o Advogado do Diabo, ele  recorreu e conseguiu tanto o direito de fazer sua própria defesa como também  que o julgamento do caso fosse através de júri popular em Rio Claro, onde tinha uma propriedade e era muito influente. Embora o consenso geral fosse de que ele matara Dana e roubara seus bens, foi julgado e inocentado por três vezes, sempre em Rio Claro, nos anos de 65, 69 e 71.
E a bosta das vacas  neste lugar que um dia foi sagrado?
A interpretação simbólica tradicional vê no excremento um concentrado de forças biológicas capaz de regenerar os seres (3). Isso se refere particularmente à bosta de vaca, que, pelo menos no mundo cabila, é a base de todos os feitiços de transferência mágica do leite, a primeira bebida, o primeiro alimento, a partir do qual todos existem em estado potencial.  O que na aparência é uma das coisas mais desvalorizadas, seria, ao contrário, uma das mais carregadas de valor: as significações do ouro e do excremento estão unidas em varias tradições.
Imagino a estrutura dessa  igreja um dia recuperada, transformada num espaço cultural e a população de Rio Claro debruçada sobre sua própria memória, sua maior riqueza.
Imagino e desejo. Afinal a história desse lugar é também parte da história de todos nós.

FONTES:
(2) http://depokafe.wordpress.com/2007/07/29/o-advogado-do-diabo-parte-2/
(3) Jean Chevalier & Alain Gheerbrant, Dicionário de Símbolos , Ed. José Olympio, 18º ed. 

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

68- O Boi & o Alpha

Evolução da escrita da letra "a" (1)

A letra "a" (ou suas equivalentes) é a primeira letra em quase todos os alfabetos do mundo, com exceção do mongol, tibetano, etíope e outros menos conhecidos. Representa, entre os povos antigos, um grande poder místico e características mágicas, associadas ao número um.
Foi a forma da cabeça  do  Boi  que gerou  a  escrita  do "aleph"  no  hebraico,  do "alpha" no grego,  do "a" no  latim.
A escrita do Egito antigo, o hieróglifo, é um sistema ideográfico, isto é, que representa idéias por meio de sinais que reproduzem objetos concretos. Usava o desenho de um par de chifres bovinos para designar a parte anterior ou o cume de qualquer coisa. O princípio do ano, ou o Ano Novo, era também representado por um par de chifres bovinos tendo um ramo nascendo entre eles. 
A representação hieroglífica do Touro (ka, áh) e de sua cabeça (àh) mantinha uma relação com o símbolo do falus (ka, bah, met, tai), que significa pênis, o touro, aquilo que é masculino, marido, entre outros significados.
Nos períodos pré-dinástico e arcaico do Vale do Nilo, os bois participavam dos primeiros arados, sob a intervenção humana, nos primórdios da agricultura. Nesse tempo era costume decorar altares e templos com crânios de touros sacrificados, também o verbo "amar" (MER) era representado pela figura de um arado na forma de um  "A" inclinado e "arar"  por um homem utilizando esse instrumento.
E ainda, numa época anterior, no Crescente Fértil, o instrumento primitivo usado para ceifar tinha a forma de uma mandíbula de touro.
O ato de cultivar a terra, o ato de fazer amor, foram associados entre si e ao boi.
Pense nisso!

FONTES:
1) "Mysteries of the Alphabet", Marc Alain- Quaknin.
2) "A Farra do Boi", do sacrifício do touro na antiguidade à farra do boi catarinense- Grupo de Estudos C. G. Jung, Coordenação Dra Nise da Silveira; Numen Editora/Espaço Cultural/1989.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

67- Novidades Nisenianas

Está previsto para ser lançado ainda este ano o documentário "Olhar de Nise", que contará a trajetória da Dra Nise da Silveira, psiquiatra que se tornou referência no Brasil no tratamento da esquizofrenia. Também foi ela que inspirou a pesquisa que desenvolvo neste blog sobre o mito do Boi (1). O filme dirigido por Jorge Oliveira será um mix de linguagem ficcional e documental. "Estou fascinado por Nise da Silveira. Descobri histórias sobre ela que são verdadeiras jóias", afirma o diretor que é alagoano como ela. (2)
Já em 2013 um outro filme chegará às telas tendo também como tema a Dra Nise. Será um longa com o mesmo título da peça "Nise da Silveira – Senhora das Imagens", que fez temporada de sucesso em 2011 nos palcos cariocas e agora está em Sâo Paulo.
Roberto Berliner (foto), diretor do filme, conta: “Foi a partir de um comercial que fomos convidados a fazer para a Casa das Palmeiras, uma das instituições que a Nise fundou que percebemos que tínhamos uma grande história nas mãos, de uma mulher que foi contra tudo e contra todos a vida inteira. E sempre esteve do lado dos marginalizados".
"Nise da Silveira - A senhora das imagens" começou a ser filmado em janeiro, no próprio no Hospital Pedro II, e vai contar com alguns dos internos atuais no elenco. A pesquisa para a realização do filme inclui documentos, entrevistas e fotos, além da trilogia "Imagens do inconsciente", o premiado documentário sobre o trabalho da Dra Nise dirigido pelo cineasta Leon Hirszman em 1983/85.
O papel da Dra Nise ficará a cargo de Glória Pires. "Estamos todos apaixonados por ela. Quanto mais a conhecemos, mais temos vontade de nos aprofundar em sua história. Está sendo uma maravilha, um aprendizado, um sonho. Ela era uma mulher de opostos. Tinha um senso de humor muito peculiar, embora fosse uma mulher muito estudiosa. Estamos nesta busca para trazer estes contrastes, sua humanidade e sua enorme carga afetiva", disse a atriz.
Quem também participa do longa é o ator Flavio Bauraqui, que vive Octávio Ignácio(4), um dos pacientes da Dra Nise. Depois de desfilar num bloco carnavalesco travestido de mulher, Octávio vive o conflito entre o prazer e a negação desencadeadas pela experiência reveladora. "O personagem é encantador. Ele não segurou a onda de gostar daquilo, de ter sentido tesão em se ver vestido como uma mulher. Então ele passa uma via inteira lutando contra ele mesmo. No nosso filme, Octávio se transforma através da dança. Depois começa até a dar aula para outros internos”,  contou Bauraqui.
O filme se passa entre 1942 e 1944, período em que a Dra Nise chega ao Rio de Janeiro para trabalhar no Hospital Pedro II, localizado no Engenho de Dentro. Lá é designada para cuidar da área de terapia ocupacional do centro psiquiátrico. Os pacientes passam então a ser tratados como "clientes" e começam a participar de atividades como jardinagem, teatro, dança, música e pintura. Essa nova abordagem terapêutica fez com que alguns esquizofrênicos embotados se transformassem em verdadeiros artistas. Pela leitura que a Dra Nise fez de suas obras podemos hoje compreender a riqueza das imagens representadas por eles.
O interesse permanentemente renovado pela vida e obra da Dra Nise confirma o que ela dizia sobre si mesma: "Quem olha muito para trás, fica (parado no tempo). Não sou muito do passado. Sou do futuro". 


NOTAS:
1) Ver postagens 1 a 5 de 30/09 a 19/11/2010 deste blog;
2) Fonte: Miriam Rezende Gonçalves;  
3) Na foto: Roberto Berliner, Glória Pires e Flavio Bauraqui durante a coletiva de imprensa sobre o longa 'Nise da Silveira - A senhora das imagens'. De Geraldo Protta/Imagem Filmes;
4) Ver postagem 11 de 9/12/2010 deste blog.