sexta-feira, 18 de maio de 2012

76- Boicheiro, o boi de Cora Coralina


"Eu vi
o cheiro do boi.
Eu vi
cheiro de pasto
maduro, crestado, amarelado.

Eu vi chuva mansa chovendo
chuva fina caindo
Capim nascendo, gramando, repolhando.

Eu vi
lameiro de mangueira, repisado.
Cheiro de currais,
estercado, mijado.
Cheiro de saúde,
fecundo, estimulante"
("Evém Boiada" - Coralina, 1990, p. 137)

Mestra no uso poético de alusões sinestésicas, Cora Coralina  (1) um dia escreveu: "Lindo demais Coração é terra que ninguém vê". No seu poema "Evém Boiada", evoca cheiros, cores e imagens do coração do nosso interior,  lugar onde "habita" o boi. Cheiro de boi é perfume que vem do pasto, da fazenda de um tempo atrás, que ficou pra sempre presente na lembrança do que chamei de "Boicheiro". 
A persistência do cheiro de alguém, mesmo depois da sua partida, evoca uma idéia de continuidade. O cheiro simbolizaria assim a memória. Talvez tenha sido esse um dos sentidos do emprego do perfume em ritos funerários.
A presença sutil e, apesar disso, real do cheiro o assemelha simbolicamente a uma presença espiritual.  Sabemos como desde tempos ancestrais o perfume está associado aos mais diversos ritos. O homem tem usado o perfume agradável dos incensos como oferenda à Divindade entre os orientais, hebreus, gregos, romanos, egípcios, ameríndios e católicos. 
Em experiências sobre as imagens mentais os doutores Fretigny e Virel (2) demonstraram que os odores têm poder sobre o psiquismo, facilitando o aparecimento de imagens e de cenas significativas. Essas imagens, por sua vez, suscitam e orientam as emoções e os desejos.

Já dizia o poeta Carlos Drummond de Andrade (3) "assim é Cora Coralina...mulher extraordinária, diamante goiano cintilando na solidão"!

Notas:
(1) Cora Coralina, pseudônimo de Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, nasceu em Goias no dia 20 de agosto de 1889, e morreu em e 10 de abril de 1985. Mulher simples, doceira de profissão, viveu longe dos grandes centros urbanos, alheia a modismos literários. Começou a escrever os seus primeiros textos aos 14 anos de idade, publicando-os nos jornais da cidade de Goiás. Casou em 1910 com o advogado e chefe de polícia Cantídio Tolentino de Figueiredo Bretas, com quem se mudou, no ano seguinte para o interior de São Paulo, onde viveu durante 45 anos.
Com a morte do marido, trabalhou vendendo livros, produzindo e vendendo lingüiça caseira e banha de porco, até  retornar em 1956  para Goiás. Ao completar 50 anos de idade, a poetisa relata ter passado por uma profunda transformação interior, a qual definiria mais tarde como "a perda do medo". Nessa fase, deixou de atender pelo nome de batismo e assumiu o pseudônimo que escolhera para si muitos anos atrás. Durante esses anos, Cora não deixou de escrever poemas relacionados com a sua história pessoal, com a cidade em que nascera e com o ambiente em que fora criada.
Seu primeiro livro "Poemas dos Becos de Goiás e estórias mais", foi publicado quando Cora contabilizava 75 anos. Reúne os poemas que consagraram o estilo da autora e a transformaram em uma das maiores poetisas de Língua Portuguesa do século XX. Em 1983, Cora Coralina recebeu o título de Doutor Honoris Causa da UFG, foi eleita intelectual do ano e contemplada com o Prêmio Juca Pato da União Brasileira dos Escritores. Sua casa na Cidade de Goiás foi transformada num museu em homenagem à sua história de vida e produção literária. (Ref: http://www.amulhernaliteratura.ufsc.br/artigo_suely.htm)
(2) Fonte:  Dicionário de Simbolos, J. Chevalier e A. Gheerbrant, 18a ed, Ed José Olympio.
(3) Veja Postagem 74 deste blog, "Boitempo, o boi de Carlos Drummond de Andrade".


terça-feira, 8 de maio de 2012

75- Boipaisagem, o boi de Ferreira Gullar


"Vai o animal no campo; ele é o campo como o capim, que é o campo se dando para que haja sempre boi e campo; que campo e boi é o boi andar no campo e comer do sempre novo chão. Vai o boi, árvore que muge, retalho da paisagem em caminho. Deita-se o boi, e rumina, e olha a erva a crescer em redor de seu corpo, para o seu corpo, que cresce para a erva. Levanta-se o boi, é o campo que se ergue em suas patas para andar sobre o seu dorso. E cada fato é já a fabricação de flores que se erguerão do pó dos ossos que a chuva lavará, quando for o tempo."(1) 
(Ferreira Gullar)

Ferreira Gullar nasceu em São Luís do Maranhão em 10 de setembro de 1930. 
Batizado José Ribamar Ferreira, decidiu mudar seu nome. Usou o Ferreira do pai e o Goulart francês da mãe virou Gullar. Disse ele: "Como a vida é inventada eu inventei o meu nome!".
Autodidata, começou a escrever poesia aos treze anos, dedicando-se mais tarde também ao estudo da crítica e história da arte. Publicou o primeiro dos seus mais de vinte livros ainda na terra natal, transferindo-se para o Rio de Janeiro em 1951, onde trabalhou em jornais e revista.
Participou do movimento de arte concreta (1955-57) sendo então um poeta extremamente inovador, escrevendo seus poemas, por exemplo, gravando-os em placas de madeira.
Em 1959, fundou  junto com outros poetas, críticos e artistas plásticos, tais como Lígia Clark e Hélio Oiticica, o movimento neo-concreto, que valorizava a expressão e a subjetividade em oposição ao concretismo ortodoxo.
No início dos anos 60, se afastou também deste grupo por concluir que o movimento levaria ao abandono do vínculo entre a palavra e a poesia. 
Dirigiu a FUNART, a Fundação Cultural de Brasilia e o IBAC. Foi presidente do Centro Popular da Cultura e um dos fundadores do Grupo Opinião, ajudando a organizar a resistência contra a ditadura militar. Foi preso em 68 e viveu no exílio a partir de 1971. (2) 
No poema Boitempo (3) Carlos Drummond de Andrade identifica o boi com o tempo, quando o tempo era o tempo do boi, e acompanhava os ponteiros da natureza. Seguindo o mesmo “caminho da roça” entitulei o boi de Ferreira Gullar de Boipaisagem. Mais que mimetizado, completamente identificado com a paisagem do campo, esse boi é o próprio campo. É boi da época anterior à pecuária industrial(4), em que os bois freqüentavam pastos e eram imagem integrada ao ciclo natural.


NOTAS
1) Fonte: Ferreira Gullar, "Toda Poesia"(1950/1980), SP, Círculo do Livro, 1983, parte 5, p.50.
2) Ferreira Gullar, "Nise da Silveira: uma psiquiatra rebelde", Perfis do Rio 10, RJ, 1996.
3) Ver postagem 74, de abril de 2012, Boitempo, o boi de Carlos Drummond de Andrade.
4) Ver postagens 73 e 73, de abril de 2012, O Boi Espermático - partes 1 e 2.