segunda-feira, 5 de maio de 2014

114- Uma História de Déjà vus (3/4) - Do Algodão-da-Praia ao Planetário de Deus

(continuação da postagem 113)
José Alberto termina a leitura do último poema e retira-se. Quando volta, fala com rapidez sobre dinheiro, documentos... Desaparece novamente para voltar em seguida com duas flores lindas. São amarelas com o centro vermelho escuro, recém tiradas de alguma árvore próxima ao museu, conhecida pelo nome de algodão-da-praia. Oferece uma pra mim e outra pra uma colega, para então desaparecer novamente nos corredores do museu.

Aquela flor
Como um pequeno raio de luz
Do sol
Por um momento
Um déjà vu...

Logo em seguida, me vem à memória 1981, mais de 25 anos atrás...
Fui ver no Paço Imperial a exposição Imagens do Inconsciente, homônima do livro de Nise da Silveira que estava sendo lançado. Eu não era ainda psicóloga, tinha uma outra profissão e fui por pura curiosidade.
Estavam ali expostas obras dos pacientes psiquiátricos do período entre 1946 a 1974, algumas dessas mesmas obras que eu agora revisitava no atelier do museu com meus colegas da PUC.
Em 81 os loucos ficavam internados. A forma como se davam as internações e o tipo de tratamento desumano a que eram submetidos refletiam, na visão de Ferreira Gullar, uma forma da sociedade cada vez mais racionalista e pragmática desembaraçar-se de um incômodo. Segundo ele "quanto mais a sociedade se organizava, mais racionalizava seu funcionamento e suas relações de trabalho e produção, menos espaço sobrava para os que não se ajustavam a essa organização". Hoje José Alberto, que se auto-intitula "o neto da Nise", mora em sua casa própria, ao lado do museu, que frequenta livremente.
Um dia, Nise se negou a aceitar o convite feito pelo psiquiatra diretor do hospital para acionar o botão que produziria o choque elétrico em um paciente, como também se negaria a usar o choque insulínico e o cardiazol. Nesse momento uma revolução se instalou no seu caminho e no caminho da psiquiatria brasileira. A partir daí passou a dirigir a seção de Terapêutica Ocupacional do Hospital Pedro II, único lugar onde esses procedimentos não eram utilizados.
Sem possuir ainda uma teoria de Terapêutica Ocupacional, buscou no caminho psicológico uma alternativa para o tratamento da esquizofrenia. Buscou meios de expressão simbólica tendo criado além de oficinas de trabalho (costura, encadernação, marcenaria...), ateliers de atividades expressivas como pintura e modelagem.
Contrariando os conceitos até então estabelecidos, as imagens pintadas ou modeladas pelos pacientes psicóticos revelaram riquezas insuspeitadas mesmo após longos anos de doença, foi o que Nise pôde perceber e relatar ao mundo.
Em 1954, envia uma carta a Jung junto com algumas fotografias de mandalas produzidas pelos pacientes. Em resposta, o mestre efetivamente as reconhece como manifestações de forças do inconsciente que buscavam compensar a dissociação. Via como um esforço para superar os conflitos profundos e uma possibilidade de reencontrar um equilíbrio na relação com o mundo.
Nise descobre na psicologia junguiana, especialmente no conceito de inconsciente coletivo e das imagens arquetípicas, a chave para decifrar a leitura das obras produzidas pelos esquizofrênicos. Em 1957, ela obtém uma bolsa para estudar no Instituto C. G. Jung, em Zurich, apresentando em seguida as obras do acervo no II Congresso Internacional de Psiquiatria. 
Lança uma nova alternativa às teorias da época, mostrando ser o afeto um caminho possível de aproximação entre o mundo fechado do esquizofrênico e a realidade. Organiza o material produzido demonstrando estar ali expresso algo possível de significar a vida psíquica desses pacientes.

Um dos quadros da exposição Imagens do Inconsciente me chamou atenção especial. Continha a representação de uma outra flor muito semelhante aquela que Jose Alberto me ofereceu. Talvez possa até ter sido tirada da mesma árvore próxima ao museu. Quem vai saber? Carlos Pertuis, paciente da Dra Nise deu o nome a esse quadro  de Planetário de Deus Pintou no centro uma flor dourada, símbolo do sol e da divindade, uma mandala que se apoia sobre duas serpentes negras simétricas, símbolos da escuridão e do mal.

Fontes:
1) Gulllar, Ferreira Nise da Silveira, uma psiquiatra rebelde. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996.
2) Jung, C.G. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1963. 
3) Silveira, Nise. Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981.