segunda-feira, 18 de agosto de 2014

119- O Erotismo na Obra de Cora Coralina (Matadouro - Boi - 1/3)

   

"E as boiadas vêm descendo do sertão!
Safra, entressafra...
Mato Grosso. Minas. Goiás.
Caminhos recruzados. Pousos espalhados.
Estradas boiadeiras. Aguada...
Pastos e gerais.
Cerrados. Cerradões...
Compáscuos...
Cercados. Aramados.
Corredores.
Nhecolândia. Pantanal.
Cochim.
Campos de Vacaria. Dourados. Maracaju.
Rio Verde.
Santana do Paranaíba. Serras do Amambaí.
Criatório...
Boiadeiros. Fazendeiros.
Comissários. Criadores.
Invernistas. Recria.
Trem de gado ronceiro...
jogando, gingando
nos cilindros, nos pistões, nas bielas e nos truques.
Rangendo, chocalhando,
estrondando nas ferragens.
Resfôlego de vapor.
Locomotiva crepitando, fagulhando,
apitando, sinalando, esguichando, refervendo.
Chiados, rangidos, golfadas, atritos, apitos.
Bandeira vermelha que se agita.
Bandeira verde da partida.
E o resfolegar do trem que vem, do trem que vai...
Trem de gado engaiolado, parado
na plataforma, na esplanada.
Gente que passa - para.
Corre os olhos. Conta as gaiolas. Avalia. Sopesa.
Soma. Dá o cômputo.
Espia. Mexe. Recua.
Procura agitar os bois famintos, sedentos.
Cansados, enfarados, pressionados.
Ribombos no tabuado.
Ameaçar inútil.
Coice. Chifres entrechocantes.
Traseiros esbarrondando.


Grades lameadas. Gaiolas estercadas, respingantes.

... e o boi que se deita exausto...
Exaustos, esfomeados, sedentos, engaiolados,
cansados.

Estradas de ferro ronceiras.
Longas viagens demoradas,
rotineiras.
Composição parada nos desvios - tempo
aguardando horário, partida, sinal...
Bandeira verde, apito...

Eu vi
o boi deitado, exausto.
Pisado. Mijado. Sujo. Escoiceado.
Quartos encolhidos. Juntas dobradas. Cabo inerte.
Olhar vidrado.
Vencido.

Encosta na paleta a cabeçorra enorme.
Começa a morrer.
Morre devagar... dias, noites...
Arrancos inúteis.
Mugido parco. Lúgubre...
Estrebuchar de agonia.

Emporcalhado - estira os quartos.
Alonga o pescoço. Encomprida o cabo.
Língua de fora, de lado.
Olhos abertos. Vidrados.
Morre o boi.
Olhos aberto, vidrados
vendo - o pasto verde,
o barreiro salitrado, a aguada fria, cantante,
distante...

Eu vi
a alma do boi pastando, lambendo, bebendo,
nas invernadas do Céu.
Eu vi - de verdade -
a alma do boi - boizinho pequenino,
entrando, deitando alegrinho
na lapinha de Belém.

Pouso de Boiadas
Poso di boiada tá
marcado nessa taba
di portera
(Publicidade Sertaneja)

Pouso de boiadas...
- a espaço.
Nas dobras,
nas voltas,
no retorcido das estradas.

Pouso das boiadas,
à s’tância
das marchas calculadas.
Porteira a cadeado.
Xiringa de contagem.
O gado cansado
recanteado, esmorecido,
espera.
Um mar de rebuliços misturados,
de ancas, de patas, de dorsos e de chifres,
vai entrando engarrafado
na xiringa da contagem.

“... aperta não.” 
“Segura...” “Froxa...”
“Dez, vinte, trinta, cinquenta,
Cem. Duzentos e cinquenta,
trezentos, quatrocentos,
Quinhentos...”

“Cerra...” “Abre...” “Mili...”
“Miiili duzentos e dezoito”
- marcados em golpes de cinquenta
num talo de capim.
No espigão, o rancho.
O ponteiro adiante,
se apeia, desarreia.
Estira o corpo.
Pendura no gancho
o berrante.

Pensa em nada, besteira.
Mira a boiada
que vai entrando,
abocando o pasto rapado do cercado.

A boiada se alarga
rumo da aguada.
“- Aguada boa é o que vale.”
Marcha, marcha batida,
calculada
pela s’tância dos pousos espalhados.

A culatra vem vindo devagar.
Duas marchas para trás.
Bois estropiados, feridos, machucados,
remancando, passo a passo.
Boi meio morto,
querendo só deitar,
se acabar de uma vez
pelo caminho.
Arrenegado,
levanta o boi, xinga nome,
se dana - o culatreiro.

O rancho.
O fogo.
A trempe.
O caldeirão.
O cozinheiro.

Redes estendidas,
amarradas no esteado.
Tropa. Burrama derramada.
Antes, depois de arraçoada
se espojam no terreiro.
Sacodem pelos - manifestos.
Bufam. Relincham.
Procuram uns morder os outros.
Escoiceiam.

A boiada se espalha
Beiradeando a cerca.
“- Manelão, dá reparo
no cercado;
vigia se tem passage
por onde boi escapa”
- manda o comissário.

Janta. Café. Golada...
Descanso nas redes,
nos pelegos, pelo chão.
Morre o fogo do cozinheiro.
Conversa à-toa,
rede a rede.
Lume de cigarro.
Faísca de isqueiro.
Longe, retardado,
buzina um caminhão.

A boiada, cansada,
esmorecida,
deitada,
rumina, remastiga.
Troca os bolos,
num sobe-desce
intervalado.

Conversa sem sentido.
Os homens estirados
nas redes e nos forros,
assuntam de mulheres...
- Fêmea. Erotismo de macho.
Palavreado obsceno.
Cheiro de terra.
Cheiro da noite.
Cheiro de boi.

Manelão canta sozinho.
Manelão canta baixinho.
Moda de mulher.
... Dola... Xandrina...
... o chamado obscuro, sexual.

Pontual,
o comissário tira um caderninho.
Faz contas, concentrado.
Acerta o pouso.
Nhecolândia... Andradina...
70 marchas...
O culatreiro...
22 na culatra.
10 na arribada do quebraçal...
Esmorece a luz do candeeiro.
O presente se adensa na distância sonolenta.
A boiada saindo a custo do monchão. Berrando...
Berra triste, boi do pantanal.
O vaqueiro, no cavalo pantaneiro,
lida o boi pelos temerários caminhos d’água.
Encostado na garupa do boi,
enganchado no quarto do boi,
vai chamando no seu jeito.
Vai levando no seu jeito.
Vai tirando no seu jeito
dos corrichos, do banhado.
- Vaqueiro do pantanal - macho igualado.

Boiada recebida, recontada,
no seco, na planura, na largada.
Bem longe do monchão.
Boi pantaneiro de casco mole,
querendo sempre voltar,
à querência.
Urrando. Enchendo o sertão, a solidão
de berros comoventes, diferentes.
Quebrando. Sangrando.
Endurecendo o casco mole
no cascalho das estradas.

Na passagem do carandazal,
a boiada parada,
deitada,
muge, nhaca, baba, lambe os cascos
- pegou febre.

Pantanal...
Fundão de Mato Grosso.
Andradina: porta de São Paulo.

Boi pantaneiro, miúdo, desmerecido.
Pequeno, suberbio, crioulo legitimado.
Não aceita mestiçagem
nem cruza com zebu,
nelore ou guzerá.
Recobra. Ganha peso.
Demuda nos bons pastos.

Dois mil e quinhentos bois consignados.
Dois golpes pegando estrada.
Mil duzentos e cinquenta cada um.
Papelada...
Imposto. Taxas ad-valorem...
Barreiras... coletorias... Maçada.
22 na culatra,
10 na arribada - entre vivos e mortos.

O grosso vai ali,
rumo das invernadas,
frigoríficos, charqueadas.

Cheiro de terra.
Cheiro da noite.
Cheiro de boi.
Manelão canta em surdina,
Manelão canta baixinho,
Manelão canta sozinho
toada de mulher.
Dola... Xandrina...
O rude chamado sexual.
A saga bárbara dos boiadeiros."  

 

Cora Coralina traz, numa linguagem poética, o cotidiano do sertão. Vários de seus poemas demonstram que o tema erotismo (1) envolve toda e qualquer situação. Em "Evém boiada" (2) a poeta mostra que a natureza do animal é reproduzir, cobrir vacas, exercer seu papel de macho, mas também  explicita a dor da castração e da impossibilidade do não cumprimento natural da vida sexual.

Morte e vida em "Trem de Gado".  Cora nos revela aos sentidos, em cheiros , sons e imagens, a manifestação do erotismo natural, "o rude chamado sexual, na saga bárbara dos boiadeiros", inspirada pela  boiada a caminho do matadouro.

C. G. Jung usou o termo Eros para conceituar o aspecto básico da psicologia feminina, enquanto Logos é o principal atributo relacionado ao masculino. O conceito  Eros se expressa como uma ligação psíquica, e  Logos com o interesse objetivo. Cora Coralina compartilha, talvez inconscientemente, desta ideia, uma vez que sua escrita erótica faz sobressair intensamente o valor do feminino. Aceita Eros como elemento natural da vida, extrapolando limites patriarcais de uma sociedade falocrática.


NOTAS

1) Erotismo - conjunto de expressões culturais e artísticas humanas referentes ao sexo. A palavra provém do latim 'eroticus' e este do grego 'erotikós', refere-se ao amor sensual e à poesia de amor. A palavra grega deriva-se do nome de Eros, o deus grego do amor, Cupido para os romanos, que com suas flechas unia corações. Simboliza, dentre vários significados amor, paixão, desejo intenso. Simbologicamente podemos definir o erótico como a atração para o perfeito, o integral. A junção harmoniosa entre masculino/feminino e a natureza/Deus.
2) Ver neste blog, postagem 76 "Boicheiro, o boi de Cora Coralina", de maio de 2012.
3) Fontes:
http://unb.revistaintercambio.net.br/24h/pessoa/temp/anexo/1/255/209.pdf 
Poemas dos Becos de Goiás e estórias mais. Global Editora. 21a Ed. 2003
4) Agradeço a indicação do texto à querida amiga, Ana Cretton, escritora, contadora de histórias e admiradora de Cora Coralina, assim como eu.

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