terça-feira, 6 de agosto de 2013

100- Amarildo, o Boi Humano

Desaparecido
 Amarildo de Souza, o boi humano


Você sabia que os conhecidos chamavam Amarildo de ‘boi’?
"Porque fazia a proeza de carregar dois sacos de cimento nas costas, apesar de magro e quase baixo (...) era também quem carregava os doentes nas costas, tirando-os de dentro da favela e vencendo as escadarias da Rocinha. De todas as descrições de Amarildo, é a do boi a mais marcante, a infinitamente repetida. É como boi que o enxergavam. Boi, não touro. E esta, talvez, seja parte da tragédia. A que começou muito antes do derradeiro crime.(...) Amarildo de Souza, 43 anos, foi levado para a sede da UPP da Rocinha, favela da zona sul do Rio de Janeiro, na noite de domingo, 14 de julho, 'Para averiguação' (...) Amarildo acabara de voltar de uma pescaria quando quatro policiais o abordaram, supostamente confundindo-o com um traficante, embora testemunhas digam que pelo menos um deles o conhecia muito bem. (...) Amarildo entrou no carro da Polícia Militar vestindo apenas bermuda e chinelos. Sem camisa, o torso de boi estava nu. Desde então, não foi mais visto. O comandante da UPP, major Edson Santos, disse aos repórteres Marco Antônio Martins e Fábio Brisolla, da Folha de São Paulo, que Amarildo teria ficado menos de cinco minutos na unidade, o suficiente para ser desfeita a confusão de identidades, e em seguida teria sido liberado. A Rocinha tem 84 câmeras. Naquele domingo, as duas câmeras diante da UPP tiveram problemas. O GPS dos carros de polícia não funcionava. O que teria acontecido com Amarildo que as câmeras não puderam ver? (...) Amarildo era ajudante de pedreiro e criava os seis filhos num barraco de um único cômodo, num ponto da favela em que o esgoto serpenteia pelas vielas e tuberculose é doença corriqueira. Não sabia ler, só escrevia o próprio nome. (...) Ganhava R$ 300 numa obra em Copacabana, salário que complementava carregando sacos de cimento nos finais de semana. Estava contente porque tinha conseguido comprar tijolos para alargar sua casa. Ele, que a vida toda construíra a casa dos outros, nas quais tijolos não faltavam. Como o animal cujo nome lhe impingiram, Amarildo também atravessava a vida carregando um peso que não lhe pertencia. Sim, porque Amarildo era chamado de boi, não touro. Boi de canga é aquele que puxa o arado, um passo penoso depois do outro, um dia seguido de outro dia, as costas suadas debaixo de um sol excessivo. Quem já viu a cena sabe que o mais brutal são os olhos mansos do boi, a resignação de quem só conhece uma sina, a canga que já lhe espremeu a alma. Se Amarildo era ou não boi talvez nunca saberemos, mas o fato de Amarildo ser visto como boi, o que foi citado em quase todos os perfis da imprensa, não deve passar incólume. Não pela sua dimensão poética, mas porque há algo de perturbador no discurso do boi. O boi não é um animal qualquer. A palavra que o representa marca uma castração. O boi é um vir-a-ser que não será, um interrompido no meio do gesto de tornar-se. Ele poderia ter sido um touro, não fosse o homem ter dado a ele outro destino quando ainda era pouco mais que uma criança, num ritual de sacrifício, mesmo que as técnicas sejam hoje modernas. O boi é aquele que é emasculado para ser ofertado ao serviço ou ao consumo. É emasculado para a servidão – seja como força de trabalho, seja como fornecedor de proteínas. É alienado de si para virar carne, força bruta a serviço de seu dono e algoz. O touro, não. O touro tem a pulsão sexual, o que o faz ser aquele que é. Na literatura, os bois humanos são castrados de esperanças, de possibilidades, de revolta com sua condição servil – de liberdade.(...) Amarildo, o boi humano, é o pobre submisso. (...) É inaceitável Amarildo desaparecer, assim como é uma grande notícia que Amarildo tenha virado notícia. (...) O valor simbólico do boi atravessa o tempo e assinala visões de mundo, ainda que inconscientes, nas diferentes classes sociais. É tão comum como triste quando, ao serem confrontados com alguém identificado como autoridade, o que pode ser simplesmente alguém de uma classe mais privilegiada, os pobres apresentam de imediato sua carteira de trabalho para provar que existem e são pessoas boas. (...) As questões incômodas têm o mérito de nos fazer a avançar e, quem sabe, nos tornar melhores. Dito isso, a pergunta se impõe: onde está Amarildo?” 

Notas:
1- Agradeço à Chiara Krengiel pela dica para essa postagem e recomendo o site:  http://chiarakre.tumblr.com/Chiara Krengiel DESIGN

3- Leia a postagem desse blog: 101- Na Sombra do Boi.

4 comentários:

  1. Hanstrup S Freeman via facebook:
    "Amarildo não pode virar boi dos piranha!!!"

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  2. Valeria Pereira via email:
    "Interessante: quando soube do apelido dele lembrei de você;Que bom que escolheu o texto da Eliane para fazer a tua homenagem: eventualmente acompanho o que ela escreve e é sempre muito bom."

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  3. nascimento-educacao
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    http://www.facebook.com/pages/De-Quase-tudo-Um-Pouco/384966318238456?ref=hl

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  4. De Marilene Séllos via email ;
    "Belo, o texto de Eliane Brum,com uma proposta de reflexão sobre os "bois" Amarildo, que precisam ser respeitados, para que possam viver uma cidadania plena."Onde está Amarildo?"

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