terça-feira, 17 de abril de 2012

74- Boitempo, o boi de Carlos Drummond de Andrade

   
 Cow Mario (1)      
“Entardece na roça de modo diferente. 
A sombra vem nos cascos, 
no mugido da vaca separada da cria. 
O gado é que anoitece 
e na luz que a vidraça da casa fazendeira 
derrama no curral 
surge multiplicada sua estátua de sal, 
escultura da noite. 
Os chifres delimitam 
o sono privativo de cada rês 
e tecem de curva em curva 
a ilha do sono universal. 
No gado é que dormimos 
e nele que acordamos. 
Amanhece na roça de modo diferente. 
A luz chega no leite, 
morno esguicho das tetas, 
e o dia é um pasto azul 
que o gado reconquista.”        
(Boitempo, Carlos Drummond de Andrade)

Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira MG, em 31 de outubro de 1902. De família de fazendeiros em decadência, estudou na cidade natal, em Belo Horizonte e com os jesuítas no Colégio Anchieta de Nova Friburgo RJ, de onde foi expulso por "insubordinação mental". Poeta, cronista, contista e tradutor, sua obra traz a visão de um individualista comprometido com a realidade social.
Excelente funcionário publico, trabalhou no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e se aposentou em 1962. Desde 1954 colaborou como cronista no Correio da Manhã e, a partir do início de 1969, no Jornal do Brasil. Alvo de admiração irrestrita, tanto pela obra quanto pelo seu comportamento como escritor, Carlos Drummond de Andrade morreu no Rio de Janeiro RJ, no dia 17 de agosto de 1987, poucos dias após a morte de sua filha única, a cronista Maria Julieta Drummond de Andrade.
Drummond foge da estrutura tradicional da linguagem literária quando inventa uma palavra composta "boitempo"para batizar seu poema memorialístico escrito em 1968 - um ano especialmente marcado por memórias trágicas, como as mortes de Martin Luther King, de Robert Kennedy, do estudante Edson Luis, dentre outras vozes de “insubordinação mental” que se manifestaram em todo mundo.  
Em Boitempo, o boi é a encarnação de um tempo perdido quando o tempo era o tempo do boi, da natureza. Materializa uma idade campestre que se perdeu, mas que continua viva na digestão lenta da linguagem poética. A roça é representada pelo boi, um animal calmo, que rumina indefinidamente os alimentos – simbolizando também a própria condição memorialística que não termina nunca de digerir suas recordações.
Boitempo também intitula o livro onde Drummond reúne poemas que tratam das recordações da infância, um momento em que o menino fez a passagem do mundo rural para o colégio interno.
Já dizia Drummond; “Ninguém é igual a ninguém. Todo o ser humano é um estranho ímpar". 
Cada um tem seu boi. Boitempo é o “boi” do poeta. E o seu? Como é o boi que habita em você?

NOTA:
1) Ver CowParade, postagem 50 deste blog, de agosto de 2011;
2) Agradecimento à Sonia Hirsch.

Um comentário:

  1. Marilene Séllos, via e-mail:
    "O meu "boi" está sempre buscando digerir recordações que me alimentam a alma. A mãe que inventava e contava histórias, o pai
    que passava filmes com projetor de manivela."

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