terça-feira, 5 de junho de 2012

77- Bois que sonham e conversam, de Guimarães Rosa


         “- Um homem não é mais forte do que um boi ... E nem todos os bois obedecem sempre ao homem...
              - Eu já vi o boi-grande pegar um homem uma vez ... O homem tinha também um pau comprido e não correu ...
              Mas ficou amassado no chão, todo chifrado e pisado...Eu vi! ... foi o boi-grande que berra feio e carrega 
              uma cabaça na cacacunda...”
Em uma conversa corriqueira dois homens discutiam o fato dos bois se comunicarem. Então um deles conta a história de Tiãozinho, um menino órfão que carregava o cadáver do pai juntamente com uma carga de rapadura, ocupando o lugar do pai de guia do carreiro Agenor Soronho. O menino sofria maus tratos do carreiro, porém nada podia fazer, pois esse era amante de sua mãe e quem agora sustentaria sua família. Tiãozinho apenas sonhava que um dia daria um jeito no carreiro.
Por hora, teria que suportar o sofrimento calado.
Num dado momento do conto, Agenor Soronho encontra-se em um sono profundo. Ao seu lado, guiando o carro de bois, Tiãozinho cochila e sonha que está matando o carreiro. Nesse momento seu sonho entra em sintonia com o sonho dos bois, que consideravam o menino um igual, tanto que o chamavam de “bezerro-de-homem”.
          “- O bezerro-de-homem sabe mas às vezes... tem horas em que ele vive muito perto de nos, e ainda é bezerro ...
           tem horas em que ele fica ainda tão mais perto de nos... Quando está meio dormindo, pensa quase como 
           nós bois... Ele está lá adiante e de repente, vem ate aqui ... Se encosta em nós, no escuro...Tenho medo 
           de que ele entenda nossa conversa...
Percebendo que o carreiro estava dormindo, os animais jogam a carroça bruscamente arremessando o homem, fazendo ainda com que uma das rodas passasse por cima da sua cabeça. 
O menino desperta assustado, vendo o carreiro morto.
Agora , segue seu caminho com dois cadáveres dentro do carro de bois. ( Resumo do núcleo central do conto Conversa de Bois, do livro Saragana, de Guimarães Rosa) (1)

Nesse seu conto Guimarães Rosa faz uma alegoria sobre a crueldade do algoz na figura de Agenor Soronho e a justiça de suas vítimas, o menino órfão e os bois, quando trocam de posição se unindo no sonho e recuperando a força que estava na sombra (2).

NOTA:
1) Considerado por muitos como o maior criador em prosa do século XX no Brasil e um dos maiores da cultura ocidental moderna João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, em 1908. Estudou medicina e trabalhou no interior de seu estado como medico da Força Pública. Conhecendo mais de uma dezena de idiomas em 1934 prestou concurso para o Itamaraty, onde trabalhou como diplomata e como embaixador. Faleceu aos 59 anos no Rio de Janeiro, três dias após sua posse na Academia Brasileira de Letras. Os contos e romances escritos por Guimarães Rosa ambientam-se quase todos no chamado sertão brasileiro. Sua obra destaca-se, sobretudo, pelas inovações de linguagem, sendo marcada pela influência de falares populares e regionais que, somados à erudição do autor, permitiu a criação de inúmeros vocábulos a partir de arcaísmos e palavras populares, invenções e intervenções semânticas e sintáticas.
Publicado em 1946, “Sagarana” é provavelmente a mais importante estreia em prosa da história da literatura brasileira. Já com 38 anos quando o livro foi lançado, Guimarães Rosa passara mais de uma década trabalhando em suas histórias. A escrita, repleta de neologismos, confunde habilmente o real e o imaginário. O próprio título do livro é um hibridismo criado pelo autor: “saga”, de origem germânica, quer dizer “lenda”, “canto heróico” e “rana” é uma palavra de origem indígena que significa “à maneira de”. Sagarana seria então uma “espécie de fábula”.
2) Sombra é aquela personalidade oculta, recalcada, frequentemente inferior e carregada de culpa, cujas ramificações extremas remontam ao reino de nossos ancestrais animalescos, englobando também o aspecto histórico do inconsciente. Se antes se pensava que a sombra humana representasse a fonte de todo mal, mais adiante se entendeu que ela não é apenas composta de tendências moralmente repreensíveis, mas também de certo número de boas qualidades, instintos normais, reações apropriadas, percepções realistas, impulsos criadores, etc. (ref.: C. G. Jung, “Memórias, Sonhos e Reflexões”-1963)